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quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Dois senhores e um jogo de xadrez.


Em uma conversa já iniciada entre dois idosos no parque... O rumo que a conversa toma é:

O estranho é já ter tido um monte de conversas assim.

Diz o senhor idoso que usa um chapéu panamá jogando com as peças brancas.

Mas meu, caro... O que tem demais nesse tipo de conversa?

Pergunta o senhor idoso calvo jogando com as peças pretas.

Vou tentar te explicar, velho amigo. Durante vinte e três anos eu pensei em uma conversa que eu tive com a minha falecida esposa. Não era uma conversa muito profunda, nem mesmo posso chamar de conversa. Foi mais um monólogo. Ela me disse coisas que eu já tinha escutado sobre o nosso relacionamento de longa data... Nada de mais.

E que coisas foram? E espera um momento... Não era ex-esposa?

Pergunta o senhor calvo.

Uma delas foi sobre o primeiro filme que vimos no cinema. Primeiro e único. Ela detestou.
E qual foi a outra pergunta? Ah... Deixa prá lá... Eu fiz besteira no jogo.

Diz isso se concentra no tabuleiro, pois moveu a peça errada.

E por quê?

Pergunta novamente o senhor calvo após movimentar o bispo.

Porque era um filme de guerra. Acho que o nome era "nossos mortos serão lembrados". Algo desse tipo. Ela detestava filmes de guerra e eu adorava.

Diz enquanto sorri lembrando-se das expressões faciais da esposa durante o filme.

E o que tem de tão diferente nessa conversa?

Pergunta novamente o senhor calvo.

Joga... É sua vez.

Diz o senhor de panamá antes de responder. Em seguida responde:

Na verdade essa conversa não tem nada de mais. Só que da ultima vez que ela falou algo assim para mim foi a vinte e três anos atrás.

Ao concluir a frase hesitando em mover a sua rainha. Ele joga e arruma seu panamá na cabeça.

Eu não entendo. Era uma conversa comum. Uma que vocês tiveram mais de uma vez durante todo o tempo de casados. Qual o problema dela ter tido pela ultima vez essa conversa a vinte e tantos anos atrás?

Pergunta o senhor calvo antes de movimentar o seu peão e após fazer sua jogada recosta na cadeira e cruza os braços.

Vinte e três anos.

Corrige o amigo.

Vinte e três anos atrás quando tive essa conversa foi através de uma carta. Ela já tinha me deixado e ido morar em outro país.

Diz isso abaixando seu chapéu panamá de modo que não desse para o amigo ver seus olhos que estavam começando a lacrimejar.

O senhor calvo descruza os braços, se senta mais para frente e diz:

Sabia que ela tinha te deixado, mas eu não sabia que ela tinha te deixado há tanto tempo atrás.

Tudo bem. Parece mais doloroso do que é. Fique tranquilo.

Diz o senhor de panamá arrumando novamente seu chapéu e limpando seus óculos embaçados.
Ele faz um movimento com a sua torre e diz para o amigo seguir com o jogo.

Mas me conte, o que tem de mais nessa tal "conversa comum de vinte e três anos atrás"?

Pergunta o senhor calvo ainda curioso.

É que foi uma conversa através de uma carta. Mas a carta não era para mim por mais que falasse da minha pessoa. Foi uma carta que por acaso foi enviada para o antigo endereço onde morávamos. Uma casa que está no nome dela que ninguém visitava. Ainda está mobilhada. Talvez ela ainda tivesse esperanças de voltar para lá.

Diz o amigo com no rosto um olhar de saudade. Não uma saudade com tristeza. Somente uma saudade.

O senhor calvo posiciona o seu pião e diz:

Xeque.
Bom, mas você pelo visto visitava aquela casa uma vez ou outra então? Ia lá para se lembrar dela ou algo parecido, certo?

Pergunta o senhor calvo.

Sim, claro. Não estava por ali por acaso e ia exatamente por esse motivo. Eu esperava encontrar algo lá que fosse um motivo para que ela voltasse. Isso eu não achei.
Um dia eu simplesmente tinha acabado de trancar a porta quando o vento acabou abrindo a caixa de correio. Quando eu fui fechá-la eu vi que tinha uma carta dentro. A carta parecia estar lá fazia um bom tempo.

E o que tinha nela?

Diz o senhor calvo recostando-se novamente na cadeira enquanto olhava para o amigo contando isso com os olhos fixos no tabuleiro enquanto punha uma mão esquerda no maxilar e a outra embaixo do braço esquerdo.

O que tinha nela? A conversa rotineira.
A-Ha!

O senhor de panamá responde e move seu rei e sai do xeque.

É esse o motivo de ficar abalado com a carta? Ser uma conversa rotineira?

Pergunta o senhor calvo coçando a sua cabeça com uma expressão facial de quem não entendia mais nada.

Deixe-me explicar. O fato de como eu encontrei a carta mudou todo o sentido da carta. A minha esposa, digo, ex-esposa... Eu estou ficando velho e mesmo assim não consigo chamá-la de ex. Impressionante. Enfim... Minha EX-esposa tinha escrito sobre a tal conversa que tivemos. Onde praticamente só ela falava e não explicou nada, não disse nada que eu não soubesse, mas o modo de eu achar a carta mudou o sentido da conversa.

Diz o senhor de panamá esboçando um sorriso sutil.

Ah... Agora faz sentido. Você ficou comovido com o modo do tempo e das circunstâncias terem deixado a conversa diferente.

Diz movendo sua torre e recostando novamente na cadeira com um olhar de quem tinha resolvido o mistério.

Não. Não foi por isso.
Xeque.

Diz o senhor de panamá e move seu bispo.

O senhor calvo continua recostado, mas agora com um rosto novamente confuso. Eis que retruca:

Pare de prolongar essa conversa e me diga logo o que tem de especial na carta.

Após dizer isso ele move seu rei.

O senhor de panamá olha para o jogo, não move peça nenhuma, olha para o seu amigo e diz:

O que tem de especial é que foi a primeira vez depois de tantos anos que eu tinha milhões de coisas para dizer para ela e que talvez estivesse com medo de dizer, mas não era por esse motivo... Uma das coisas que diria seria para que ela voltasse. Eu até hoje sinto falta dela. O que tem de especial na carta foi somente um momento onde eu talvez pudesse fazer algo, mas fiz de um modo "errado".

O amigo calvo pergunta com um olhar compenetrado:

O que você fez, meu caro?

O senhor de panamá pega o seu cavalo para movê-lo e antes de movê-lo diz:

Eu escrevi uma carta dizendo tudo para ela para que ele mesmo endereço onde eu achei a carta dela e nunca voltei lá para ver se a carta tinha sido entregue.
Eu tinha as palavras certas para serem ditas, mas nunca tive o momento certo. Disso eu tenho certeza.

O amigo calvo diz com uma voz de conformidade:

A carta deve estar lá. A sua ex-esposa está falecida afinal de contas. Não teria como pegar a carta.

O amigo tira o chapéu com a mão que não segurava a peça do tabuleiro bota na altura do peito o chapéu e diz para o amigo sorrindo:

Ela fez eu prometer antes de partir para falar dela como se ela estivesse morta, mas na verdade não está.
Faça um favor para mim e guarde este segredo. Fale dela do mesmo modo que eu e se um dia ela acabar encontrando esta carta faça cara de surpreso.
Xeque mate.

O senhor de panamá põe de novo o chapéu após dizer isso e aponta o tabuleiro para o amigo.

O senhor calvo faz uma cara de surpreso com a jogada e quando o amigo vê tal expressão diz com um sorriso brincalhão no rosto:

Faça exatamente esta cara de surpreso. Será convincente.

Um comentário:

  1. Gostei do final; o velhinho deu a volta por cima no jogo xD

    Distrair as pessoas conversando sempre ajuda numa hora dessas... rsrs

    Mas pesquei a seriedade nas palavras do sr. de chapéu de panamá. Maneira interessante de demonstrar algo, através de um conto. ^^

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